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[Arquivado]A vivência do tempo na vila medieval e seu termo


vital900

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Relógio da Câmara Municipal de Praga (séc. XV)

No final da Idade Média, o tempo era ainda marcado pelos ritmos agrários, lento, sem qualquer precisão na sua medição, não podendo ser medido com rigor. A unidade de tempo era o dia, que começava-se pelo nascer do sol, estendendo-se até ao pôr do sol. Paralelamente, desenvolvia-se o tempo religioso, este marcado pelas horas canónicas. Contudo, a sociedade urbana introduzia alterações no modo de olhar, sentir e medir o tempo, resultante da necessidade de adaptação a uma evolução económica, relacionada com as condições do trabalho citadino. Criava-se, então, o dia de trabalho urbano, doravante quantificado e com grandes diferenças relativamente ao mundo rural. O sector têxtil solicitava o prolongamento do tempo da jornada. Os conflitos em torno do dia de trabalho eram escassos, mas o trabalho nocturno começaria por ser olhado como uma “heresia”, uma vez que se apresentava contra a natureza, sendo sancionado através de multas. A noite deveria ser deixada ao descanso, acrescendo o facto do trabalho nocturno ser mais dispendioso relativamente ao diurno. Pois a noite era, para o homem medievo, o espaço privilegiado dos fantasmas, das tempestades, dos lobos e de todos os malefícios, lugar onde os inimigos do homem tramavam a sua perda física e moral. Uma vez que, quando terminava o dia, sobrevinham os animais maléficos (Salmos 104:20), a peste tenebrosa (Salmos 91:6), os homens que odiavam a luz – adúlteros, ladrões e assassinos (Job 24: 13-17). Tornava-se necessário implorar a Deus para que protegesse os homens do nocturno e da escuridão que subtraía o homem à vigilância de outrém e de si próprio.

Por isso se punia de maneira mais vigorosa aqueles que haviam atacado alguém após o fim do dia, quando a vítima tinha menos hipóteses de defesa, dificultando o pedido de socorro. Entretanto, surgiam instrumentos que começavam a marcar o tempo de trabalho, apesar de o fazer ainda de modo rudimentar - os sinos (com cordas, puxadas à mão). O não cumprimento do tempo do sino implicava o pagamento de multas. Todavia, o sino do trabalho era, muitas vezes, distinto do sino das igrejas, levando a que estas perdessem o monopólio dos sinos. Surgia, pela primeira vez, um tempo laico paralelo às horas canónicas. Dois modos distintos de medir o tempo. Dois tempos diferentes que coexistiam!

Mas a grande revolução no tempo seria provocada pela invenção e difusão do relógio mecânico (criado no final do século XIII), implantando-se de forma desigual na Europa. O dia tornou-se divisível, e a hora passou a ser entendida como a vigésima quarta parte do dia.

O aparecimento do relógio mecânico no termo de Torres Vedras, paralelamente ou em substituição dos muitos relógios de sol, deu-se nos finais do século XV, quando D. João V teve notícia dos relógios de bater horas, invenção do mestre Frei João da Comenda, irmão leigo do convento franciscano de Nossa Senhora da Conceição de Leça da Palmeira. Em 1478, porém, já as horas batiam na torre do convento de Santo António de Varatojo.

Mas também o edifício da Câmara tinha o seu sino e relógio, apesar de desconhecermos a data da sua instalação. Sabemos, contudo, que o relógio já existia em 1596, uma vez que, a 23 de Setembro, a vereação mandou-o consertar a Vicente Láos Halemão, morador na cidade de Lisboa, de modo que ande muito corente he se não desconserte.

As regiões de maior desenvolvimento urbano, artesanal e comercialmente activas, conheceram mais cedo esses inventos, como o Norte de Itália. Todavia, durante muito tempo, predominou (mais no mundo rural) o tempo ritmado pelos ciclos naturais, coexistindo com o preponderante tempo religioso. E continuaria pelas centúrias seguintes um tempo que era ainda incerto. Um tempo regional, ainda longe de unificado. Um tempo contaminado pelo mundo rural, uma vez que a hora começava a contar a partir dos ritmos naturais, levando a que o ponto de partida fosse variável.

O relógio mecânico começou por ser visto como uma obra de arte. No início estranho ao mundo urbano, tornou-se um instrumento de luxo e ornamentação, um factor de expressão da promoção económica e do prestígio de cada urbe. Os critérios estéticos sobrepunham-se aos utilitários, acrescendo o facto do relógio se encontrar frequentemente avariado.

O tempo era definido de modo diferente pelo mercador, para quem tempo era dinheiro e, consequentemente, perder tempo era perder dinheiro. De igual modo, era preguiçoso aquele que perdia o seu tempo, que o gastava, e que não o media, sendo este um pecado espiritual. Andando ao sabor do tempo, uma vez que não o media, o preguiçoso aproximava-se dos animais, que vagueiam pelo mundo. Mas o mercador também conheceu a oposição e a condenação da Igreja, pela prática da usura, uma vez que o empréstimo a juros era considerado venda do tempo, e este era pertença exclusiva de Deus. Os humanistas irão valorizar a medição do tempo, ao transpor a contagem para a sua própria vida, contribuindo para uma certa laicização do tempo monástico. Deste modo, como o bom cristão, o humanista separava o tempo de trabalho do tempo de lazer. E paulatinamente consideraria que não trabalhava, uma vez que o trabalho fazia parte das gentes de condição social menos elevada. Por isso mesmo, o burguês com posses procurava trabalhar de manhã, pelo menos em teoria, deixando o tempo da tarde para a vida social e para o ócio (por oposição ao negócio – a negação do ócio).

Contrariamente, o homem rural trabalhava o dia inteiro. No termo torriense, durante a Idade Média, era preponderante o tempo natural, numa sociedade marcadamente rural, sendo as actividades agrícolas ritmadas pela sucessão dos dias e das noites, assim como pelas estações do ano. Um tempo também marcado pelo religioso, definido a partir das quatro igrejas paroquiais da vila de Torres Vedras – Santa Maria do Castelo, São Pedro, São Miguel e São Tiago – assim como das torres sineiras de Santa Susana do Alcabrichel (Maxial), Santa Maria da Carvoeira, São Salvador de Monte Agraço e Santa Maria de Enxara. Proibia-se o trabalho ao Domingo – dia que deveria ser dedicado à oração - e nos dias santos. Mas o tempo também se celebrava e frequentava – o tempo de festa e de feria - momento simultaneamente sacral e profano. Testemunham-no as festas (com ou sem procissão) do Corpo de Deus ou da Solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo, do Natal, da Circuncisão do Senhor, da Páscoa, ou do São João, entre
tantas outras. Algumas tratavam-se de festas pagãs, solesticiais, apropriadas pelo Cristianismo. Para além destas, determinados acontecimentos, anuais ou ocasionais, implicavam alterações no tempo das gentes, introduzindo um tempo novo, de excepção, o tempo de festa. Entre estes, encontrava-se o tempo da Feira (de feria), que Torres Vedras recebera por carta de D. Dinis, em 1293, que se realizava de 1 de Maio a 1 de Junho, alterando-se, em 1318, para o período de 1 de Junho a 1 de Julho. Feira que adquirira o epíteto de Feira de S. Pedro, a partir de 1521, por carta régia de 16 de Agosto. Momentos de excepção como teria sido o da fundação dos
conventos de Nossa Senhora da Graça, em 1366, ou da inauguração do convento de Varatojo no dia de S. Francisco de Assis, a 4 de Outubro de 1474, que marcaram um tempo de festa. Um tempo social - descontínuo, irregular, pendular - vivido como alternativo, com cesuras no decurso uniforme. Um tempo social entrecortado por períodos de inversão, assinalados pela permuta dos papéis sociais, com ou sem mascaras e disfarces, como acontecia no Entrudo.
SAIBA MAIS: VEIGA, Carlos Margaça; SILVA, Carlos Guardado – O
Livro de Acórdãos do Município de Torres Vedras: 1596-1599. Torres
Vedras: Câmara Municipal, 2003.

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